Monday, October 02, 2006

Deevagando pela cidade

Ontem foi dia de eleições no Brasil. Como vivo fora, tinha de apresentar-me ao consulado para votar, mas apenas para presidente. Esse, no entanto, mais além de "exercer o meu direito à cidadania" (que contrasenso isso de exercer a cidadania no Brasil, vivendo em um outro país...), foi mais um mote para perambular por essa maravilhosa cidade (nome propositadamente omitido).

Andando com os meus headphones postos, dou-me conta de que sair de casa é como uma imersão no mundo exterior. "Imersão" no sentido de que ponho o meu aquário musical na cabeça e distancio-me do mundo. Vislumbro gente que passa e vejo que há muitas pessoas fazendo o mesmo. Criamos redomas pessoais, esquivando-nos de situações (ao menos verbalmente) embaraçosas com os demais. Qualquer tipo de interacção seria deixado para o lado visual, portanto. Mesmo assim, a coisa já complica quando realizo que levo postos os meus óculos escuros ; mas não por falta de colírio, como dizia a canção, e sim como uma capa extra de isolamento pessoal.

Os óculos escuros e os Walkmans (iPods ou diabo que o valha) são os "condoms" mais socialmente aceitos e difundidos que há! Assim, não há motivo nem razão para confusões. Palavras ditas por alguém não serão mal interpretadas por mim, insultos passar-me-ão desapercebidos e aquele otário que me olhava com cara de despeito foi embora frustrado quiçás, por não ter logrado passar de um zero à esquerda da esquerda no meu conceito. Também é verdade que aquela deixa da menina bonita que passou, caiu no vazio e não se transformou em cantada. E não existe tal coisa como uma foda adiada... (sim, sou bem mais directo agora)

Um pensamento antigo vem-me à mente: cada ser humano é uma ilha. Por vezes, conectamos com outras e criamos a noção de pertencer a algo maior, formamos continentes. No estado actual das coisas, vislumbro arquipélagos dispersos pelo mundo. Apesar de estarem longe, sei que, felizmente, quando me acerco, ainda que temporariamente, somos península.

Voltando à "realidade" desse dia em específico, aproximo-me do consulado Brasileiro e à minha banda sonora particular agregam-se camadas de ruído e trechos de conversações das cercanias.
Retiro os headphones e escuto distintos grupos de brasileiros falando do mesmo. Não falam das eleições, o tema é a inexistência de uma comunidade tupiniquim no exterior. Cada um relata alguma experiência própria e todos são unânimes no espanto com as reacções de outros brasileiros ao cruzar-se com conterrâneos no estrangeiro: parece que todos esperam o pior um do outro, que cada qual tenta aproveitar-se dos demais da pior maneira possível.

Apago a música, desconecto o telefone e sigo as instrucções para votar. Meu único pensamento em todo o processo, desde a minha entrada no local até o momento em que o abandono, é a sensação de comunhão colectiva com os demais na "estranheza", e nesse momento, sinto que sou parte de uma comunidade.

Saio à rua e as conversas seguem o mesmo rumo. Nenhuma fala do suposto tema do dia. Escuto a provável deixa de alguém mais próximo de mim sobre uma suposta "aura de superioridade" de alguns brasileiros perante seus compatriotas. Ponho os fones, activando o meu aquário/borbulha actimel com banda sonora e sigo rumo à casa. O continente nunca pareceu tão longe...

5 comments:

Roberto Mello said...

Cara, tu escreve muito bem.
Queria ter sua verve e principalmente ter paciência pra colar a bunda na cadeira e desenvolver uma narrativa que preste. Eu só consigo lançar sementes, sabe? Talvez por escrever durante o trabalho. É isso.
Abraço. Belo texto.

Mascis said...

Ta comecando bem ;)

Wasgs said...

Parabéns Eva pelo primeiro texto. Vamos a ele. Também sinto isso do headphone como mecanismo de isolamento do mundo exterior. Dia desses saí de casa com um boné, óculos escuros desses curvos que fecha totalmente a cavidade do olho e headphone. Me sentia um astronauta. Alheio a tudo fora da minha conecção visual e olfativa. E mesmo o que se vê, faz-se diferente. O que era muito prático para o que eu estava fazendo na altura.
Mas não gosto da idéia de viver assim. Sempre que vejo passar um ônibus ou bonde onde mais da metade das pessoas estão usando headphones me lembro de Admirável Mundo Novo (Brave New World) do Huxley. As pessoas grudadas em um mecanismo alienante. E também percebi que fico menos tolerante e mais agressivo. Só uso quando de mau humor.
Já em relação aos Brasileiros. Melhor deixar prá lá. Afinal,. eles re-elegeram Maluf e FERNANDO COLLOR e Clodovil foi o terceiro candidato a deputado estadual mais eleito de São Paulo. Nada mais a dizer...

Roberto Mello said...

De certa forma, acho esse lance dos headphones algo onanista...
Aquela coisa de "brincar sozinho", nenhuma interação com o mundo externo.
Mas isso vai mudar um pouquinho com essas novas levas de players que prometem "troca" de arquivos, ainda que o maior uso pro "povo" vá ser boçar mostrando como são cool em relação a seus gostos musicais.
Já isso lembra as Jukeboxes, que no geral servem mais pra isso do que pra escutar música mesmo... :P

Evz said...

Eu fecho a cara e noto que entro em "survival mode" quando saio de casa assim. As situações quando não o faço devem-se a ir de carona pro trabalho com amigos. Impressionante como isso cambia totalmente o teu dia.