Sunday, October 08, 2006

Falta de absurdo

Lí hoje que David Lynch, um dos meus ídolos maiores, está na zona em que vivo para mais um certame de um conhecido festival de cinema fantástico. Lí com muito gosto que desta vez, ele seria o principal homenageado e que iriam tentar exibir o seu novíssimo filme em primeira mão no país. Lí isso voando de volta pra casa.

Entre o cansaço da viagem e a sensação de haver estado 4 dias ausente daqui, valeu mais a segunda e por isso, agora escrevo.

É difícil precisar, mas talvez a razão maior pela qual admiro Lynch é pela sua capacidade de incutir o absurdo nas suas produções. Do que o meu escasso conhecimento permite discernir, creio que Fellini seria o que mais próximo vejo de sua obra, por apresentar tal elemento bastante presente em seus filmes.

Farto-me de ler críticas (algo que faço sempre simplesmente com efeito de baliza e POSTERIOR à visualização das obras em questão, após a formação de uma opnião própria sobre esta) sobre seus filmes, classificando-os de "devaneios", "pesadelos" e "situações fantasmagórico-surreais", "esquizofrenia visual/narrativa" (Lost Highway, Mullholland Drive, Eraserhead,...) e apesar de encará-las como válidas, considero-as ultra limitadas. Opniões fruto de mentes habituadas ao padrão linear determinado pelo standard industrial de produção criado em Hollywood (de uma forma generalizada, mas não total, felizmente!), que entrega filmes como bolos preparados com a intromissão do público em sua preparação. Onde não há margem para variedade, exploração e a liberdade artística dobra-se ao gosto do freguês, porque ele é rei.

David Lynch, no entanto, surpreende, pelo grande poder de liberdade que apresenta de conseguir passar suas idéias ao mercado, vendendo-as com sucesso, mesmo que incondizentes com os rótulos que recebem.

O absurdo, o inexplicável e o vago em seus filmes, a meu ver, representam a sua sublime capacidade de atribuir realismos fantásticos à situações inverossímeis. Que coisa existe afinal, de mais absurda e subjectiva que a realidade? O nosso dia-a-dia é recheado de situações que não compreendemos e que ficam por explicar. Postas de parte, relativizadas e transformadas em tabús, tais situações são incômodos temas de conversa e, portanto, não merecem atenção. Carecem de importância. Ao revelar, em Veludo Azul, uma série de realidades abomináveis, tão rentes à superfície, mas ainda assim, invisíveis a todos os que vivem numa (aparentemente) pacata cidadezinha do interior dos Estados Unidos, é para mim digna de um mestre. E de que forma tais coisas são reveladas!

A realidade não é unidimensional. Ao contrário do que muitos crêem, não temos todas as explicações para as coisas e nem tudo quiçás se explique. A ciência meramente é um acto estatístico desenvolvido pelo ser humano. Mede-se uma série de fenômenos e busca-se a definição de um padrão, que materializa-se em uma fórmula. Entretanto, mesmo as melhores fórmulas não conseguem ser absolutas, e hão-de considerar um chamado "desvio-padrão". Por isso diz-se, em toda a regra existe uma excepção, e esta a confirma.

Chamem-no de distorcido e de absurdo, mas da forma como o vejo, é o director de cinema que mais parece saber o que é brincar de ser Deus. Ele compreende que não há um cravo moral que rege o universo, e limita-se a mostrar-nos uma sucessão de factores que levam a um fenômeno. O problema na definição dos seus filmes, a meu ver, vistos que nenhum filme necessita ser definido, senão que por practicidade de disposição nas paredes de um vídeoclube; é que muita gente se assusta facilmente com o que finais abertos implicam. Em uma realidade caótica, as pessoas pedem por espectáculos com linearidade e ordem matemáticas(Coisas que não se encontra na vida real). A lógica do mercado cinematográfico tem de seguir a dos produtos que se consomem durante a sua exibição: de rápido consumo, digestão e fadados ao esquecimento instantâneo (que gera a necessidade de mais e mais).

Um viva a Lynch, o cineasta perturbado mais lúcido da actualidade! Hip, Hip,...


[Necessito urgentemente descansar e transformar esse rascunho em um texto discernível... Ou não!]

4 comments:

Wasgs said...

Não necessita não. Deixe o "rascunho" do jeito que está. Se o que dizes de Lynch em termos visuais é exatamente a forma como tu escreves, então porque mudar? Compartilho a admiração por Lynch e a sua ótica da dimensionalidade da vida, principalmente quando se vive em sociedade. Kafka atacava imensamente isso da tentativa da burocracia mental querer colocar a todos em caixas. De fácil entendimento e esquecimento. Consumo.
Outro ponto que eu acho importantíssimo é o fato das histórias abertas deixarem as pessoas no ar e cada história pode ser fechada como se quiser ou simplesmente não fechada (vejo porque quem está acostumado a começo-meio-fim se perde e se sente frustrado). Acho que por isso mesmo muita gente gostou de Straight Story. Jack Kerouac fazia algumas coisas semelhantes quando escrevia capitulos de uma tirada, sem virgula, ponto ou pontuação nenhuma e acabava no nada (agora me esqueci o nome do livro). Você lê ou vê, absorve, digeri e entendi de seu modo. Não é preciso convencer ninguém de nada. Mas é muito possível que se você ver de novo o mesmo filme, que tire conclusões diferentes. Então nada está concluído e aí é que está uma das grandes forças dele, a meu ver. Nada na vida está concluído e para os religiosos, nem depois da vida...
Um fato que não mencionaste, ou pelo menos não explicitamtente, é o fato de Lynch trabalhar com a imagem como imagem. Nem tudo precisa ser explicado em termos de palavras. Nem tudo precisa ser explicado. Basta ser digerido pela mente, pelos olhos. Isso faz com que os filmes dele sejam ao mesmo tempo sobre-naturais em alguns aspectos e desconcertantes para quem quer verbalizar o que não é necessário ser verbalizado.
Enfim, aproveite prá ver o homem que como dizes é o rei da imagem e história não linear. Foi mal pelo imenso comentário, mas gosto bastante de análises de filmes e autores pelo lado não comercial e mais para o lado humano/literário...

Roberto Mello said...

Belo texto. Como disse wasgs, deixe o rascunho como está.
Rapaz, juro que eu quase me omito de comentar, acho que vcs já falaram tudo que eu tinha pra dizer, mas vou dizer mesmo assim.
Eu adoro Lynch. Já tive discussões acaloradas inclusive com "cabeças" sobre ele, que achavam o filme dele sem sentido! Sentido? O que é sentido? É sentir? Wasgs falou nisso brilhantemente, que ele trabalha com a imagem. E cinema é imagem em movimento que causam impressões e sensações em vc. Não precisa necessariamente conter uma linearidade.
Outra coisa importante é que ele trabalha com o inconsciente magistralmente.
Porra, num vou falar mais nada, vcs fecharam tudo que eu tinha pra dizer. Pena que isso não seja uma mesa de bar. Pena que vcs estejam longe. Pena que eu ainda me feche às vezes. :(

Roberto Mello said...

Tá bom, vou acrescentar só mais uma coisinha que esqueci. Não sei já assistiram o documentário "Janela da Alma", que é ótimo. A parte que eu mais gostei foi a entrevista com o Win Wenders. Em que ele fala sobre a diferença dos filmes de antigamente sobre os de hoje no contexto que os de antigamente davam "tempo" pra se entrar na história. POr exemplo, os faroestes muitas vezes passavam um bom tempo filmando o deserto, sem "dizer" nada, tempo que a pessoa usava pra organizar suas idéias e se inserir no contexto do filme. Atualmente não. Atualmente o "ritmo" dita-se por "combos" onde a tentativa é desligar o cérebro do sujeito e/ou fazer ele sentir na hora x ou y e por aí vai.
Porra, isso dava uma discussão do caralho. NO final das contas tem a ver com o povo gado. Tem que a ver com admirável mundo novo. Tem a ver com escolhas. Tem a ver com tanta coisa. Agora quem "viajou" fui eu. Abraço.

Evz said...

Acho que seguindo o comantário de Queequeg sobre o Wim Wenders: Wim também é dos meus directores favoritos, mas pessoalmente creio que tem um problema na hora de "fechar" os seus filmes. Sempre pensas que acabaram e seguem uma hora mais.

A respeito de "dar mais tempo", creio que aí reside o grande mérito do polêmico "Brown Bunny", do Vincent Gallo. Os maiores méritos do filme para mim são: tratar a imagem como imagem (como referiu Wasgz); mostrar uma situação bastante realista (nunca estive nos USA, mas o ví como um país e menos como um local de plástico) e principalmente pelo "tempo real", em por a personagem a pensar como se pensa, sem tanta preocupação estética por parte do actor, e sim na óptica do director (que coincidente e estranhamente são a mesma pessoa).